O impacto da biologia tumoral na personalização do tratamento do câncer de cabeça e pescoço
- daniellezanandre
- há 2 dias
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O futuro do combate ao câncer está sendo desenhado pela biologia molecular que permite conhecer a assinatura de cada tumor. São tempos de evolução da medicina personalizada e o Prof. Dr. Luiz Paulo Kowalski trouxe a sua visão sobre como essa revolução acontece em sua especialidade, o câncer de cabeça e pescoço.

O que é biologia molecular tumoral e o qual sua importância na oncologia?
O câncer é fundamentalmente uma doença genética. Isso significa que, para que um tumor se desenvolva, é necessário que ocorram alterações no DNA das células – sejam por mutações herdadas de nossos pais ou por mudanças adquiridas ao longo da vida devido a fatores como tabagismo, exposição solar ou outros agentes ambientais.
A biologia molecular tumoral é a área da medicina que investiga essas alterações genéticas específicas de cada tipo de câncer. Podemos pensar nessas alterações como uma "impressão digital" do tumor, cada tipo de câncer apresenta um conjunto único e característico de mudanças no DNA. Essa "assinatura genética" é extremamente valiosa na prática médica, uma vez que pode ser utilizada para confirmar diagnósticos, estimar o prognóstico da doença e, principalmente, prever quais tratamentos terão maior chance de sucesso para cada paciente individualmente.
O que representa a biologia molecular especificamente para o câncer de cabeça e pescoço e que mudanças ela trouxe?
A biologia molecular revolucionou nossa compreensão e o tratamento dos cânceres de cabeça e pescoço. Suas contribuições podem ser divididas em três grandes áreas:
- Primeiro, na identificação de riscos hereditários. Por exemplo, conseguimos detectar mutações genéticas que indicam alto risco para o desenvolvimento de carcinoma medular de tireoide, permitindo medidas preventivas, como a remoção da glândula em familiares com alterações detectadas, mesmo que ainda não tenham nódulos.
- Segundo, no fornecimento de informações prognósticas importantes. Um exemplo marcante é o câncer de orofaringe (garganta) associado ao vírus HPV. Hoje sabemos que esses tumores apresentam melhor resposta ao tratamento e prognóstico mais favorável quando comparados aos tumores da mesma região não relacionados ao vírus.
- Terceiro, na orientação terapêutica personalizada. Marcadores como o PDL-1 nos ajudam a identificar quais pacientes se beneficiarão da imunoterapia, um tipo moderno de tratamento que fortalece o sistema imunológico para combater o câncer.
Quais são os impactos dos avanços da biologia molecular no diagnóstico do câncer de cabeça e pescoço?
Os avanços diagnósticos são notáveis em várias situações. Um exemplo prático ocorre nos nódulos de tireoide. Quando realizamos uma punção com agulha fina e o resultado microscópico é inconclusivo, ou seja, não conseguimos definir se o nódulo é benigno ou maligno, podemos recorrer a testes genéticos no material da punção. Esses testes moleculares frequentemente conseguem esclarecer o diagnóstico, evitando cirurgias em muitos pacientes com teste negativo.
Outro impacto importante está nos tumores de glândulas salivares recidivados ou metastáticos após tratamento convencional que, historicamente, eram considerados de tratamento muito difícil. Com marcadores moleculares específicos, podemos hoje identificar pacientes que podem se beneficiar de terapias sistêmicas modernas, abrindo novas possibilidades de tratamento para tumores que antes eram considerados praticamente intratáveis.
E o qual é a importância da personalização do tratamento de câncer de cabeça e pescoço?
A personalização do tratamento representa um dos maiores avanços da oncologia moderna. O conceito é relativamente simples, mas profundamente transformador: tratar cada tumor, de cada paciente, de acordo com suas características únicas, desenhando estratégias terapêuticas específicas e ajustando a intensidade do tratamento conforme as particularidades do tumor e as condições do paciente.
Na prática, isso significa que podemos fazer escolhas mais inteligentes e menos agressivas. Por exemplo, em tumores que identificamos como radiossensíveis, priorizamos a radioterapia, preservando o paciente de uma cirurgia; em tumores radiorresistentes, optamos pela cirurgia como melhor alternativa. Além disso, o perfil molecular do tumor nos orienta sobre quais medicamentos usar: drogas citotóxicas tradicionais (quimioterapia convencional), terapias-alvo que atacam especificamente as alterações genéticas do tumor, ou imunoterapia que ativa o sistema imunológico do próprio paciente contra o câncer.
A biópsia líquida já é uma realidade no monitoramento da resposta ao tratamento?
A biópsia líquida representa uma das grandes promessas da oncologia moderna e é objeto de intensa investigação científica. Trata-se de um exame de sangue que detecta fragmentos de DNA ou células tumorais circulantes, permitindo monitorar a doença de maneira menos invasiva que as biópsias tradicionais.
Já existem testes disponíveis internacionalmente para avaliar resposta ao tratamento em tumores relacionados ao HPV, porém, infelizmente, ainda não estão disponíveis no Brasil. No A.C.Camargo Cancer Center, em colaboração com a Dra. Dirce Carraro, investigamos marcadores em carcinoma adenocístico de glândulas salivares, com resultados promissores, mas que ainda não podem ser aplicados na rotina clínica. Além disso, conduzimos, atualmente, um projeto temático da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), investigando especificamente o papel dessas biópsias em carcinomas de boca.
Embora ainda não seja uma realidade amplamente acessível na prática clínica brasileira, o campo avança rapidamente e em breve essas ferramentas devem fazer parte de nossa rotina.
Existem marcadores moleculares específicos que indicam um risco maior de metástase ou recorrência da doença?
Sim, existem diversas formas de prever o risco de metástases e recorrência de câncer de cabeça e pescoço na prática clínica, combinando parâmetros clínicos, características histopatológicas e marcadores moleculares. Por exemplo, pacientes que apresentam metástases de grande volume em linfonodos cervicais têm alto risco de desenvolver metástases à distância (em órgãos como pulmão, fígado ou ossos). Outro exemplo importante: pacientes com tumores de orofaringe relacionados ao HPV apresentam padrão diferenciado de disseminação, com maior risco de metástases em localizações não pulmonares.
Cada tipo de tumor possui seus próprios parâmetros preditivos específicos. Um exemplo clássico e amplamente utilizado são os marcadores sanguíneos tireoglobulina e calcitonina, que monitoramos após o tratamento de carcinomas bem diferenciados e carcinomas medulares da tireoide, respectivamente. Níveis elevados ou crescentes desses marcadores indicam persistência ou recorrência da doença, permitindo intervenção precoce.
O conhecimento molecular também ajuda na decisão cirúrgica, por exemplo na extensão do procedimento?
Atualmente, as informações moleculares ainda não afetam diretamente as decisões sobre a extensão do procedimento cirúrgico. O planejamento cirúrgico continua sendo baseado principalmente na extensão anatômica da doença, devidamente diagnosticada por exames de imagem e exame físico, seguindo os princípios consagrados do estadiamento tumoral. Nenhum marcador molecular modifica, até este momento, a extensão dos procedimentos que realizamos.
No entanto, é importante ressaltar que, certamente, não estamos distantes do momento em que isso ocorrerá. Pesquisas promissoras estão em andamento para desenvolver marcadores que possam ser utilizados durante a própria cirurgia – o que chamamos de "intraoperatórios" – para melhor definição das margens cirúrgicas ou da extensão necessária do esvaziamento linfonodal. Essa será uma evolução natural e esperada na área cirúrgica oncológica.
Pode nos dar alguns exemplos práticos de como o conhecimento em biologia molecular auxilia nas decisões e no manejo do câncer de cabeça e pescoço?
Certamente. Vou apresentar três exemplos práticos que ilustram bem essa aplicação.
- Primeiro exemplo: em familiares de pacientes com carcinoma medular de tireoide, a detecção de mutações no oncogene RET obriga a realização de tireoidectomia total profilática, mesmo na ausência de nódulos detectáveis ao exame clínico ou por imagem. Essa cirurgia preventiva pode salvar vidas, pois evita o desenvolvimento de um câncer agressivo.
- Segundo exemplo: a detecção do vírus HPV em tumores da orofaringe está fortemente associada a um prognóstico significativamente melhor. Essa descoberta abriu caminho para diversos protocolos de investigação que testam tratamentos menos agressivos – a chamada "desintensificação terapêutica" –, buscando manter as taxas de cura enquanto reduzimos os efeitos colaterais do tratamento.
- Terceiro exemplo: Em pacientes com tumores recidivados e metastáticos que não respondem aos tratamentos convencionais, testes genéticos podem identificar sensibilidade a drogas específicas que habitualmente não seriam empregadas para aquele tipo de tumor. Isso abre novas possibilidades terapêuticas em situações antes consideradas sem alternativas.
A biologia molecular pode ajudar a saber o prognóstico de um paciente para além dos métodos tradicionais de estadiamento?
Com certeza pode. Alguns marcadores moleculares agregam informações prognósticas importantes que vão além do estadiamento anatômico tradicional. O exemplo mais estabelecido é o dos tumores de orofaringe HPV-relacionados. Hoje existe claramente uma diferença prognóstica substancial: tumores HPV-positivos apresentam prognóstico significativamente mais favorável quando comparados aos HPV-negativos da mesma localização anatômica e mesma extensão. Isso foi tão importante que motivou a criação de um sistema de estadiamento específico para esses tumores.
Outro exemplo relevante é o carcinoma anaplásico de tireoide, um tumor extremamente agressivo e que até recentemente era praticamente incurável. Marcadores moleculares conseguem identificar a sensibilidade aos tratamentos sistêmicos modernos em alguns desses pacientes, oferecendo esperança onde antes havia poucas alternativas.
Esses exemplos demonstram que o perfil molecular complementa o estadiamento tradicional, refinando nossa capacidade de prever a evolução da doença e orientar as melhores escolhas terapêuticas.
Dos diversos tipos de câncer de cabeça e pescoço, qual é o que mais se beneficia do atual conhecimento da biologia molecular?
O câncer de tireoide é inquestionavelmente o que mais se beneficia atualmente do conhecimento em biologia molecular, em duas situações específicas:
- No diagnóstico de nódulos tireoidianos com punção aspirativa por agulha fina de resultado indeterminado. Os testes genéticos conseguem, nesses casos, confirmar ou afastar o diagnóstico de malignidade, evitando muitas cirurgias em pacientes com nódulos benignos e, ao mesmo tempo, garantindo tratamento adequado àqueles que realmente precisam.
- No rastreamento de familiares de portadores de carcinoma medular de tireoide. O teste genético positivo para mutações no gene RET identifica indivíduos em risco, que podem se beneficiar de cirurgia profilática antes mesmo do desenvolvimento da doença.
É importante reconhecer que, infelizmente, para a maioria dos outros tumores de cabeça e pescoço, os benefícios práticos da biologia molecular ainda não são tão claros ou clinicamente estabelecidos, embora a pesquisa avance rapidamente nessa direção.
Em sua avaliação, quais foram os avanços mais importantes da biologia molecular em relação ao câncer de cabeça e pescoço?
Posso destacar três avanços que considero revolucionários:
- Os testes genéticos para nódulos indeterminados da tireoide e o diagnóstico de mutações em carcinoma medular transformaram a abordagem diagnóstica desses tumores, trazendo segurança tanto para pacientes quanto para médicos nas decisões terapêuticas.
- O reconhecimento dos tumores HPV-relacionados em orofaringe foi um divisor de águas. Essa descoberta explicou a ocorrência de tumores em pacientes não fumantes, geralmente mais jovens, e trouxe implicações prognósticas e terapêuticas fundamentais.
- Estamos vivenciando uma verdadeira revolução na indicação personalizada de tratamentos sistêmicos. Terapias-alvo moleculares e imunoterapia direcionadas por marcadores específicos já mudaram o paradigma de tratamento em diversos cenários, oferecendo opções antes inexistentes para nossos pacientes.
Esses avanços representam apenas o começo de uma transformação muito maior que está em curso.
E apesar de todos esses avanços, existem desafios? Quais?
Os desafios são imensos e mantêm nossa comunidade científica extremamente mobilizada. O desafio fundamental é que ainda conseguimos curar apenas cerca de dois terços dos pacientes que tratamos. Essa marca permanece relativamente estagnada há muitos anos. Enquanto não atingirmos 100% de cura – sabemos que este é um objetivo extremamente ambicioso – não podemos parar de estudar, investigar e buscar soluções inovadoras.
Além disso, existe um desafio ainda maior: fazer melhor do que simplesmente tratar a doença já estabelecida. Precisamos desenvolver marcadores precoces que permitam identificar alterações pré-cancerosas ou cânceres em estágios iniciais, possibilitando intervenções antes do pleno desenvolvimento do tumor. Isso significaria, na prática, evitar que muitos cânceres chegassem aos estágios avançados que vemos hoje.
Além disso, há desafios de implementação: mesmo quando dispomos de testes moleculares eficazes, enfrentamos barreiras de acesso, custo e incorporação dessas tecnologias nos sistemas de saúde.
Como acontece no Brasil o acesso de pacientes oncológicos, especialmente os de câncer de cabeça e pescoço, à biologia molecular?
O acesso à biologia molecular no Brasil é, infelizmente, bastante limitado. Tanto o Sistema Único de Saúde (SUS) quanto a saúde suplementar (planos de saúde) não cobrem muitos dos testes disponíveis e clinicamente relevantes.
Na prática, isso significa que muitos pacientes precisam arcar com os custos dos exames do próprio bolso, o que obviamente cria uma barreira de acesso significativa e injusta. Existe uma situação intermediária: alguns pacientes potencialmente elegíveis para determinados tratamentos sistêmicos podem ter o teste molecular custeado pela própria indústria farmacêutica. Mas mesmo nesses casos, quando o exame é positivo e indica benefício potencial da medicação, começa uma verdadeira batalha burocrática para obter autorização e fornecimento do tratamento.
Essa é uma realidade que precisa mudar urgentemente. O conhecimento científico avança, mas o acesso a essas inovações não acompanha o mesmo ritmo, criando uma lacuna que prejudica particularmente os pacientes mais vulneráveis economicamente.
Quais as perspectivas futuras da evolução da biologia molecular?
As perspectivas são extraordinariamente promissoras. O campo da biologia molecular tumoral é vasto e evolui rapidamente. No futuro próximo, poderemos ter diagnósticos de predisposição ao câncer cada vez mais precisos, permitindo estratégias preventivas personalizadas; diagnóstico mais precoce da doença, quando as chances de cura são máximas; melhor estadiamento que combine informações anatômicas e moleculares; planejamento de tratamento verdadeiramente personalizado baseado no perfil genético individual do tumor; e métodos mais sensíveis de seguimento em longo prazo, detectando recorrências precocemente.
No que diz respeito especificamente à cirurgia, uma perspectiva particularmente empolgante é a possibilidade de utilizarmos marcadores moleculares durante o próprio ato operatório. Isso permitiria, em tempo real, uma melhor definição das margens cirúrgicas – garantindo que todo o tumor foi removido – e uma avaliação mais precisa da extensão necessária do esvaziamento linfonodal, evitando procedimentos desnecessariamente agressivos ou, ao contrário, insuficientes.
Qual é a importância da participação de pacientes em pesquisa clínica relacionadas a câncer de cabeça e pescoço?
É fundamental e gostaria de fazer um apelo importante tanto aos pacientes quanto aos profissionais de saúde: existem muitos estudos de pesquisa em andamento na área de biologia molecular e câncer de cabeça e pescoço. Quando um paciente recebe a oferta de participar de um estudo clínico ou protocolo de pesquisa, peço que considerem seriamente essa possibilidade.
A participação em pesquisas pode beneficiar o próprio paciente, que frequentemente ganha acesso a tratamentos inovadores e acompanhamento diferenciado. Mas, igualmente importante, essa participação contribui para o avanço do conhecimento científico que beneficiará futuros pacientes. Cada participante em um estudo clínico representa uma contribuição valiosa para que possamos melhorar continuamente nossos tratamentos e, eventualmente, alcançar a cura a uma maior proporção de pacientes.
A pesquisa clínica é o caminho que nos trouxe até aqui e será o caminho que nos levará aos avanços futuros. Por isso, encorajo pacientes e familiares a dialogarem abertamente com suas equipes médicas sobre essas oportunidades.





